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O Shabat na história de Pernambuco

O SHABAT NA HISTÓRIA DE PERNAMBUCO

 

 

 

Aleksandra Serbim

 

É fundamental entender que espaço este rito ocupou na sociedade pernambucana e como ele sobreviveu às fogueiras da inquisição e às dispersões do povo judeu, até chegar aos dias atuais.

No período colonial, durante a época da visitação do Santo Ofício a Pernambuco, de 1593 a 1595, houve uma grande campanha por parte da igreja católica para serem denunciados os hereges, e os cristão-novos eram bastante visados, pois alguns deles - os cripto-judeus - continuavam a manter os rituais judaicos às escondidas.

“Segundo o monitório de 1576, expedido pelo Inquisidor Geral Diogo da Silva, e que o visitador devia aplicar no Brasil, uma das principais heresias a ser apurada era se os habitantes da colônia ‘guardavam ou guardam os sábados em modo e forma judaica, não fazendo, nem trabalhando em êles coisa alguma, vestindo-se, e ataviando-se de vestidos, roupas e jóias de festas, e adereçando-se, e alimpando-se às sextas-feiras à tarde ante suas casas, e fazendo de comer as ditas sextas-feiras para o sábado, acendendo e mandando acender nas ditas sextas-feiras à tarde, candeeiros limpos com mechas novas mais cedo que os outros dias, deixando-os assim acesos toda a noite, até que êles por si mesmos se apaguem, tudo por honra, observância e guarda do sábado’. Citado em Lipiner (1969:70).

E, de todos as denúncias que foram ouvidas pelo Visitador, relativas às práticas judaizantes, a que mais apareceu foi a prática do Shabat, como mostra a  tabela abaixo6:

 

SHABAT

22,5%

DESCRENÇA EM SANTOS E IMAGENS CATÓLICAS

16,7%

BLASFÊMIA DA FÉ E RITOS CATÓLICOS

10,7%

NEGAÇÃO DE JESUS COMO DEUS

10,7%

FAZER ESNOGA E FESTAS JUDAICAS

9,5%

CERIMÔNIA JUDAICA DE MORTE

9,5%

DESCRÉDITO NA AUTORIDADE CATÓLICA

4,8%

ASSUMIR OU TER FAMA DE JUDEU

4,8%

COSTUMES ALIMENTARES JUDAICOS

4,8%

POSSUIR A TORÁ EM CASA

3,6%

POSSUIR LITERATURA HEBRAICA

2,4%

 

Por que era o Shabat a prática judaica mais denunciada? Existem algumas observações que podem esclarecer mais esta questão. Diante do contexto social da época, era comum às pessoas transitarem livremente umas pelas casas das outras. A própria arquitetura da época facilitava isto: com muros baixos e comunicações entre uma casa e outra. Deste modo a vida particular era bem mais facilmente exposta ao público. Daí, esconder um rito proibido pela condição de ser cristão-novo era difícil.

6 Trabalho apresentado pela autora na ABANNE (Associação Brasileira dos Antropólogos do Norte e Nordeste) em 2001, e na ABA (Associação Brasileira de Antropologia) em 2002.

6 Trabalho apresentado pela autoranos congressos da ABANNE (2001) e da ABA (2002).

Lipiner (1969), diz que: “As casas no período colonial, além de situadas em ruas estreitas e serem de meias paredes, comunicavam-se freqüentemente pelos quintais, permitindo falarem-se as vizinhas das janelas fronteiras ou traseiras, confinantes, e expondo aos olhos dos curiosos a intimidade de seus moradores. Tal curiosidade, própria já da natureza humana, e facilitada pelo sistema arquitetônico da época, encontrou um novo e vigoroso estímulo durante a visitação do Santo Ofício às partes do Brasil, quando entrou em pleno funcionamento esse meio primário de espionagem, posto em prática pelo Tribunal da Fé”. PP 68.

E o rito do Shabat era de todos o que exigia uma maior exposição, pois o cotidiano dos judaizantes mudava, além do que era necessária toda a preparação desde a sexta feira de ações que não era comum serem feitas em dias normais, tais como: tomar banho, vestir roupas limpas e lavadas, enfeitar os cabelos, fazer comidas especiais, e o principal - durante os momentos do dia do Shabat tais praticantes não trabalhavam, o que era bastante destoante frente à sociedade, já que naquela época o sábado era considerado um dia de trabalho comum.

 Alguns exemplos de relatos de denunciantes mostram bem a percepção da época frente ao Shabat7:

“Branca Dias guardava os sabbados, porque sendo costume da ditta Branca Dias em todos os outros dias da semana fiar algodão e andar vestida do seu vestido da semana, ella denunciante vio a ditta Branca Dias nos sabbados não fiar nunca e vio que nos dittos sabbados pella menhaã se vestia uma camisa lavada e apertava a cabeça com seu toucado lavado e vestia nelles ho melhor vestido que tinha que era uma saia azul clara que ella tinha de festa a qual não costumava vestir nos dias da semana...” PP 30.

7Extraído da obra: Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil; Denunciações e Confissões de Pernambuco. 1593-1595. Prefácio de José

“lhe lembra muito bem que vio aos dittos Diogo Fernandes e Branca Dias guardarem os sabbados todos sendo dias de trabalho não trabalhando nelles nem fazendo serviço algum de casa como costumavam fazer nos outros dias de semana e costumando a ditta Branca Dias a fiar sempre algodão pella semana quando vinhão os sabbados guardava a roça e não fiava nelles sendo dias de trabalho”PP 54.

“e denunciando dixe que elle andou na escola de Bento Teixeira cristão novo, mestre de leer e escrever nesta villa da qual escola elle sahio averá seis ou sete annos e andou nella hum anno no qual em todos os sabbados o ditto mestre não fazia escolla e mandava que nelles não fosse ninguem dizendo que não era sua vontade ter escola aos sabbados.”. PP 40.

Uma observação curiosa, é que era vantagem para os escravos serem serviçais dos cristãos-novos que guardavam o sábado, pois estes não trabalhavam no dia de sábado e geralmente no domingo também não, logo eles tinham dois dias de folga:

“Denunciou mais que no ditto tempo pouco mais ou menos, vio tambem ser fama pubrica geralmente ditto por todos assim principais como mais povo desta terra que

Antônio Gonsalves de Mello. Recife: FUNDARPE.

Diogo Fernandes e sua molher Branca Diaz cristãos novos já defuntos senhores de engenho de Camaragibi ora chamado Santiago, guardavão todos os sabbados sendo dias de trabalho, e nelles se vestiam de festa, e não hiam ao engenho como nos outros dias da semana costumavão, e nos dittos sabbados não obrigavão a trabalhar a gente no seu engenho.” PP 75.

... e nelles não usavão do serviço e trabalho que costumavão nos mais dias dasemana de ir aos canaveais e fazer prantar e mondar e outras cousas semelhantes de beneficio da fazenda, mas sómente mãodavão nos dittos sabbados fazer negros qualquer serviço leve”. PP 81.

Segundo Dias (1999), algumas das táticas, criadas para ludibriar os inquisidores e os “goim”, foram chamadas de “secretismo”. Logo, o Shabat sempre foi rodeado de muito segredo e incompreensões. Tudo isso fez com que surgisse em torno dele uma atmosfera de curiosidade e mistério, beirando muitas vezes a idéias pré-concebidas em torno deste ritual sagrado.

Anos após, com a formação da primeira comunidade judaica em Pernambuco, foi construída a primeira sinagoga das Américas, a Kahal Zur Israel, e os judeus puderam viver abertamente suas práticas religiosas, sendo o Shabat uma dessas práticas.

Durante as diversas guerras que houve entre os portugueses e holandeses, os judeus que lutavam do lado dos holandeses tinham no dia do Shabat direito de não lutarem, pagando uma multa para adquirir esse direito. Com a expulsão dos holandeses os judeus, que tinham a proteção desses, tiveram que deixar o país.

Os que não conseguiram fugir, adentraram pelo interior de Pernambuco e estados vizinhos.8

Num estudo sobre a interculturalidade, em muitos locais do interior nordestino ainda podem ser observados costumes diversos que certamente têm raízes nas tradições judaicas.  Muitos desses resquícios dizem respeito ao Shabat, tais como: o de fazer a faxina na casa todas sextas-feiras, colocando toalhas brancas ou limpas nas mesas, preparar comidas especiais, e vestir roupas mais bonitas neste dia.

“Hoje você anda no sertão e você vê os costumes das famílias, às vezes nem sabem porque nem o motivo, mas os costume são puramente judaicos...”. H.S.F. (judia convertida)

“Tínhamos muitos costumes diferentes... muito embora não se saiba o porquê, se tem o costume de se colocar uma roupa melhor, se varrer a casa na sexta feira, de se colocar uma toalha branca na mesa, de se colocar flores no vaso, e até em algumas casas de acender velas também ou candeias... Meus pais não cultuavam o sábado, mas tinham algumas regras que se aplicavam ao sábado, essa de fazer uma refeição especial, de deixar a casa limpa, ter uma toalha branca, não se sabia porque...”. R.T (judeu convertido)

Há vários relatos que contam que muitas pessoas acendem duas velas nas sextas-feiras para os anjos, de fato como no Shabat é costume se acender duas velas, e como existe no seu mito a história de que dois anjos vêm visitar a casa na noite do Shabat:

Na sexta-feira acendíamos as velas pros anjos... Tinha a tradição de acender vela sexta-feira, vela pros anjos... Duas velas... E tinha uma coisa muito engraçado lá em casa, tinha um quartinho assim meio escuro que tinha uma oratória assim cheia de imagem, esculturas, essas coisas, e minha vó só rezava de virada pra parede, assim, eu achava aquilo meio estranho. Não era vela pros anjos, era vela de Shabat. Quer dizer foram coisas que foram se adaptando que foram mudando, mas na essência você depois procura e vê isso mesmo.”

8Dados obtidos no Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco.

H.S.F. (judia convertida)

“Nós tínhamos essa questão dos anjos na sexta também, mas da vela não me lembro bem”. R.T. (judeu convertido)

Outro fato que observamos na nossa região até hoje é o de algumas pessoas, de diversas religiões, não comerem carne vermelha na sexta feira, preferindo comer carne de peixe. É certo que no jantar do Shabat, o peixe sempre foi um dos pratos principais desta noite.

“Mas a coisa do judaísmo nas famílias nordestinas é muito forte. Muita gente nem sabe que na realidade tem toda essa descendência toda essa carga genética. Mas se você senta e começa a conversar, uma diz pra mim: ah, dia de sexta feira eu não como carne, só como peixe... Eu acho isso tudo muito interessante, eu também tinha esses costumes em minha casa e não sabia o porque, lógico hoje eu sei o motivo.”. H.S.F. (judia convertida)

“Então pra nós ficou a idéia do sábado arraigada no judaísmo, então o sábado pra gente é de uma importância fantástica, primordial. Por exemplo, há bem pouco tempo atrás eu comprei da minha irmã uma louça que era usada justamente no sábado, uma louça que já vem da minha mãe que passou pra ela antes do casamento. Eu sempre tive uma paixão enorme por essa louça e por herança passou pra minha irmã e não pra mim... Então a louça que me traz muitas recordações, a louça que comíamos peixes”. R.T. (judeu convertido).

Tudo  isso  são  comportamentos  que  indicam que  houve  uma  forte influência da tradição do Shabat, mas o seu porquê é desconhecido pela grande maioria da população, ficando nos subterrâneos da sociedade. Assim, entendendo esse contexto de medo, mistério e fé, podemos ter idéia da importância deste rito diante da constituição e conservação da identidade judaica em torno de suas tradições.

 

Aleksandra Serbim